Negócio da China

Guto Castro
8 min readAug 18, 2018

Pequim, China, 24 de agosto de 2004

Amigos,

Sábado é dia de praia no Rio. Mas, para nós das cidades desprovidas desta condição, é dia de shopping center, de Daslu, de 25 de março, de Park Shopping, Feira do Paraguai, de

Oscar Freire, Brás, Conjunto Nacional, Feira do Guará, José Paulino e seja qual for a disponibilidade financeira do cidadão, nós gostamos mesmo é de consumir.

Hoje não vou nem usar a desculpa que é para movimentar a economia, para distribuir a riqueza ou por que realmente estava precisando daquele item. Compramos porque é bom pro ego.

Porque apesar de todo o caos do estacionamento é absolutamente relaxante. Não existe melhor antidepressivo do que entrar em uma loja enorme, olhar os preços, as marcas, as novidades, e, sair com pelo menos uma sacolinha na mão. Não existe Prozac que substitua isso. E mesmo quando o dinheiro está curto, dá pra pelo menos ir até o Carrefour e fazer a compra da semana com o mesmo espírito de quem vai à Daslu comprar um sapatinho básico de 3000 reais. E, pergunto a você meu caro, existe coisa mais gostosa do que chegar em casa e apreciar as compras feitas durante o dia? Aqui na China, isso assume outra dimensão. Eu diria qua se que uma dimensão sobrenatural. O que Marco Pólo descobriu aqui e levou para todo o mundo ocidental nada mais foi do que o ato de Compra e Venda. E, por ser uma tradição milenar, e talvez ainda por toda a proibição e dificuldade de expressão religiosa, o ato de compra aqui é sagrado. Os meninos aqui aprendem a negociar antes mesmo de aprenderem a andar. Parece que as mães negociam com o filho até o leite materno. A arte de vender e a arte de comprar são talvez a maior influência cultural da China para toda a humanidade.

Alguns podem achar que o macarrão, ou a pólvora, ou até mesmo a guerra tenha sido invenções mais impactantes no mundo ocidental, mas sem dúvida nenhuma se alguém inventou e levou aos extremos a Compra, foi o chinês. Por isso quando estiver na China não pense em ir comprando como se estivesse no Carrefour fazendo compras do mês. Existem ritos a serem observados. Tudo começa com um olhar…

Acompanhe-me por uma volta pelo mercado Xiu Shui em Pequim, também conhecido como o Mercado da Seda. Estamos em um sábado, duas horas da tarde. Na sua frente aquele corredor estreito de barracas, na verdade são dois corredores. Aquele barulho de vendedores chineses tentando chamar os clientes — em sua maioria também chineses, mas com representantes de todas as partes do mundo, para suas barracas com um inglês mais xing-ling impossível. Parece um corredor sem fim apinhado de gente. Não estamos na Polônia. Então você respira fundo e pisa no primeiro corredor de barracas.

Logo nos primeiros passos você avista do seu lado esquerdo, milhões de gravatas de seda. No meio delas aquela que você queria e sempre pensou em usar, mas nunca achava aquela cor com aquele desenho, à sua direita também milhões de camisas Giorgio Armani, Pólo Ralph Lauren, Boss, Gucci que mesmo sendo falsas são as camisas mais belas já feitas por mãos humanas, você resiste anda mais um pouco. Um batalhão de casacos da Timberland lhe traz um sentimento triste pois você gostaria de poder usa-los, mas, infelizmente no Brasil o frio não chega a tanto. Tacos de golfe

maravilhosos em conjuntos chiquerrésimos também trazem um sentimento de tristeza, pois você também gostaria de possuí-los, se jogasse golfe. Você consegue mais uma vez se livrar dos vendedores de meias e lembrancinhas e segue em frente.

Chega então o grande momento. Uma barraca bem à sua direita repleta de sedas. Echarpes, toalhas de mesa, almofadas, tapetes. Aquela encomenda que tanto lhe pediram está bem ali na sua frente. Seu olhos brilham refletindo todas as tonalidades de sedas existentes, seus lábios se repuxam esboçando um sorriso. E você solta sem querer um “achei vocês!”. Pronto. Começou o ritual. Quem deu o sinal desta vez foi você — o comprador. Aquela mercadoria que procurava está ali à sua frente louca para ser ensacada, entrar na sua mala e ser levada para o Brasil. “Quanto será que custa? Será que tem mais de uma peça desta?” — Mil perguntas como essas passam pela sua cabeça sem muita ordem. “Será que tem outras cores? Qual o tamanho disso?” Seus olhos continuam brilhando, agora com as pupilas dilatadas por tanta beleza, seu coração palpita mais forte, você se prepara para o primeiro movimento, estende a mão direita e com os dedos em forma de pinça, toca na mercadoria levemente, procurando ser o mais leve possível para não danificar a mercadoria. Sentindo a maciez da seda tão procurada você pergunta emocionado:

- Quanto custa? — Ansioso por ouvir que é bem baratinho, afinal está na China, e você espera fazer um negócio da China.

O vendedor chinês faz o segundo movimento, ignorando completamente a sua pergunta, ele responde com outra:

- Você gostou? Quantos quer? Que cor? Bonito né? Boa qualidade! Veja tem mais aqui dentro!

Seus pés dão meio passo adiante, mas ao mesmo tempo você não sabe se deve ir. Afinal não tem a mínima idéia do preço. Nessa indecisão e um pouco decepcionado refaz então o primeiro movimento, desta vez falando friamente, sem emoção alguma, quase com desdém em um inglês britânico impecável.

- Quanto custa isto? Qual o preço?

O vendedor sente que precisa mudar a tática. Mas ele precisa de tempo para poder dizer o preço, precisa conhece-lo melhor. Virando novamente em sua direção ele diz::

- Quantas peças o senhor vai querer? De que cor? Eu dou um desconto se forem muitas…

Seu sangue começa a esquentar e o faz fechar os olhos apertadamente por alguns milésimos de segundos. ‘Que chinês mais filho da mãe” — Pensa você intimamente sem esboçar mais emoções.

“Ele quer me enrolar — o que será que ele quis dizer com muitas? O que são muitas peças afinal? Será possível que ele não pode me dizer quanto é uma peça e depois a gente negocia o desconto se eu levar muitas?”

Respirando fundo, para não irritar o danado, você lança o primeiro número que lhe vem à cabeça:

- Eu quero cinco! Quanto sai?

Finalmente o vendedor conseguiu avaliá-lo. Ele pega a calculadora para que você não diga que não entendeu os números que ele disser. E, sem olhar nos seus olhos solta enquanto digita.

- Olha, normalmente uma é 100 Yuam, sairiam 500 Yuam. Mas pra você vou fazer bom preço. 450 Yuam! Que tal?

Você olha pra calculadora, olha pra ele. Pega então a calculadora dele, divide por 8.3 para ter o valor em dólares americanos, multiplica por 3 para ter o valor em rea is e se espanta.

“160 reais por cinco panos de seda! Isso é caro! Será que é muito caro?” — Você pensa sem já ter muita certeza…

Estivéssemos no Brasil o ritual acabaria aí. Você pensaria, veria a possibilidade de dividir, conseguir talvez uns 10 a 20 por cento de desconto. Mas na China está tudo apenas começando O vendedor não está ali para simplesmente fornecer a mercadoria para o cliente. Ele está ali para negociar. Ele quer vender, não apenas que você compre. A arte da negociação é o que ele aprendeu desde cedo. Quem não respeita esse ritual na China paga o preço. Você sabendo disso prepara o seu movimento:

- 450 Yuam por cinco echarpes??? Nunca! Jamais! Isso tá muito caro! No Brasil eu compro 20 por esse preço! — Diz você se espantando consigo mesmo e com a mentira que acabara de falar.

O chinêsinho lhe fita com um olhar tão dramático que faria qualquer Fernanda Montenegro parecer uma estagiária. E, muito ofendido ele lhe fala:

- Não. O preço é muito bom. Veja só a qualidade… Estou fazendo o melhor preço que posso.

Você, que também a essa altura já merecia um Oscar pela interpretação, continua com a cara de descrédito e dá um passo para trás, ao ver este movimento de retração o chinesinho que nunca assistiu o comercial das Casas Bahia pergunta:

- Quanto quer pagar? Quanto você acha que vale?

Esse é o ponto crucial de todo o processo. “Como assim quanto eu acho que vale?” — Você pensa indignado. “O vendedor aqui é ele, ele que tem de falar o preço e se eu não puder pagar ou achar caro eu não compro! Oras bolas!”. O vendedor repete:

- Quanto quer pagar? Quanto você acha que vale? Veja é de muito boa qualidade! Não tá caro.

Então nesta hora você tem de saber o quanto pode pagar e o quanto vale a peça, caso contrário estará perdido e o vendedor vai ganhar muito. O coração tem de ser endurecido, petrificado e congelado, a mínima manifestação de caridade cristã ou compaixão não pode aflorar. Você então achando que custaria no máximo 30 Yuam cada, mas você quer levar por 20 então você joga:

- Isso vale no máximo 10 Yuam cada. 50 Yuam pelas cinco!

Continuando em sua brilhante atuação dramática o chinês irrita-se e com um tom de quase nojo pelo que ouviu diz:

- O que? Nunca! Isso vale muito! Veja só! Você quer me matar? 400 Yuam é o melhor preço que posso fazer!

Você então, entristecido e decepcionado diz não com a cabeça e começa a se movimentar rumo ao corredor enquanto o chinês já vendo o cliente indo embora fala:

- Melhore a sua oferta então. Por favor eu quero vender!

Você, com o coração frio e olhar congelante diz novamente:

- 50 pelas cinco.

O vendedor ainda na sua atuação fantástica diz:

- 350 então.

- Não. Pago somente 50.

- Melhore essa oferta isso não dá — Diz ele mostrando que você não está sabendo seguir o ritual corretamente. Você então deixa amolecer um pouco o coração e entendendo afirma:

- 70 pelas cinco.

- 250! diz o chinês já alegre por você ter seguido o ritual.

- 75, 15 Yuam cada. Diz você já gostando da brincadeira.

- 200!

- 75 é o máximo que pago. E, dizendo isso você realmente sai em direção ao corredor.

Ao colocar o pé fora da banca você ouve o número mágico que tanto esperava.

- 100 Yuam se você levar as cinco agora!

O seu coração palpita, suas pernas diminuem o ritmo, mas sua mente o manda continuar como se não tivesse ouvido. Você sabe que está no limite da negociação. Se der mais um passo e não ouvir mais o vendedor tudo acabou. Mas se você voltar por apenas

100 Yuams você leva os echarpes. “O que fazer?” Pensa em milionésimos de segundos. “Será que ele chega nos 75?” — “Arrisco ou não?”. Levantando o pé direito do chão rumo a outra barraca você deu a cartada final. Ou era 75 ou nada. Então, como se fossem os céus se abrindo e anjos tocando, você ouve o chinês falan do baixo:

- Tá bom. 75 Yuam. Leva!

Assim você pega as suas cinco peças lindíssimas de seda, paga os setenta e cinco yuams e sai alegre e contente por ter pago menos do que esperava. Na barraca fica o chinês, triste, com um olhar de quem foi explorado até o limite, guarda o dinheiro e lhe diz

tristemente:

-Obrigado. Volte sempre! — enquanto internamente alegra- se, contando novamente o dinheiro vais pensando nos cinco yuams a mais que ganhou por peça do que ganhava nas vendas para outros chineses…

Com Saudades,

Carlos Augusto de Castro

Beijing, China (Pequim)

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