O Sonho Acabou, A Guerra Não

Guto Castro
7 min readAug 18, 2018

Saigon, Vietnã, 1º de junho de 2004

Amigos,

Da Baía de Halong — aquela do dragão descendente — fui direto para o aeroporto de Hanói. O caminho da volta era a mesma mesmice, campos e campos de arroz, mulheres trabalhando, motocicletas com vários porcos ou galinhas na garupa. Debaixo daquele sol dos trópicos, uma onda de sono me foi envolvendo e a repetição contínua da paisagem, o som do vento, a conversa do motorista com o guia em uma língua ininteligível, dormi.

O aeroporto de Hanói não é muito grande, mas que talvez de tão vazio parecia gigantesco. Assim como o Galeão em sua nova ala que de tão abandonado e sem vôos parece um cenário propício para um filme de terror, o de Hanói não se diferenciava muito. Parecia só existir vôos para Saigon, embora nos televisores era possível ler Pequim, Hong Kong, Bangcoc…

Embarquei em um vôo da Vietnam Airlines tendo como destino a Hochimin City, o novo nome que o Partido ha via dado para Saigon, a antiga capital do Vietnã do Sul. Era fim de dia, quase dezoito horas e o sol começava a se por sobre os campos de arroz do norte do Vietnã. Um final de sábado muito atípico este que acabava. Eu, um brasileiro, do outro lado do mundo, iria cruzar um país que há duas semanas eu nem sabia que era transitável, um país que somente conhecia por um nome de uma guerra. Uma guerra que descobria estar longe do seu fim. Não havia no avião nada especial como o avião todo roxo da Thai, nem o serviço impecável da Cathai e muito menos o serviço de bordo delicioso da Air France. Havia algo de diferente, um avião até moderno me levava do Vietnã do Norte para o Vietnã do Sul, da sede da Indochina para a capital da Conchinchina. Um avião da ex-União Soviética me levava para Saigon ou Hochimin City como diziam por aqui. Um jornal vietnamita em inglês era a única coisa além do meu guia turístico para passar o tempo, na última página uma notícia do Brasil. O Corinthians havia trocado de técnico novamente. Lembrei de um amigo corintiano, ele ia gostar daquela notícia, que embora fosse uma crítica, era o Corinthians do outro lado do mundo. Resolvi levar o jornal para ele. Mais uma coisinha para aumentar a

mala… Mas aquilo era melhor que qualquer lembrancinha que eu pudesse comprar.

Cerca de uma hora depois desembarcava em Saigon. Embora a companhia aérea estatal, no seu aeroporto estatal e com seus servidores estatais só falassem Hochimin City, todo o resto da população, motoristas de táxi, transeuntes, lojistas, pedintes, carregadores, crianças e velhos diziam simplesmente Saigon! Este foi o primeiro indício de que uma guerra de valores, idéias e conceitos ainda estava sendo travada nos campos da Conchinchina. Ali, bem ao lado de onde talvez a mais incompreendida e combatida

das guerras havia sido travada quarenta anos antes. Saigon tinha uma magia. A língua era a mesma de Hanói, as pessoas parecidas. Mas havia algo no ar. Além de ser uma

cidade muito maior e, conseqüentemente ter alguns milhões a mais de bicicletas, lambretas e motocicletas, tinha um “que” de audácia, de rebeldia. O fato de se recusarem a chamar de Hochimin City, a sua querida Saigon deixava claro que, mesmo aparentemente bastante doutrinados pelo Partido, não gostavam de tudo que o comunismo havia trazido. Era clara e notória a insatisfação com tudo o que vinha de Hanói.

O Hotel Majestic, em frente ao rio Saigon mantinha o glamour e classe dos anos 50. Tudo em volta do distrito número 1 de Saigon era assim: uma volta aos anos dourados. As janelas, o elevador com aquelas grades pantográficas, a piscina com acesso pela sacada dos quartos, tudo era um flashback de um momento que eu nunca vivi pessoalmente, mas que aprendi a invejar e ao ver que havia nascido em uma época em que tudo já havia sido conquistado.

Fiquei algumas horas na praça admirando a quantidade de motocicletas, famílias pai, mãe e dois filhos passeavam n a mesma moto, namorados, casais, vendedores, pedintes e até prostitutas se ofereciam sem nem mesmo saltar das motos.

No domingo logo cedo sou acordado pelo telefone: — o guia havia sofrido um acidente com sua bicicleta e uma lambreta, me ligava dizendo que atrasaria naquela manhã. Fui dire to para a missa na catedral de Notre Dame. Havia somente uma única missa

em Saigon em que os textos eram lidos em inglês e o padre era autorizado a falar por 15 minutos também em inglês. Saigon era assim, tinha os templos budistas, xintoístas e confucionistas, os centros da juventude — espaços criados pelo Partido para entreter e

doutrinar os jovens. Mas existia uma pequena brisa de liberdade que não soprava no norte, as pessoas podiam até ser católicas, embora não sejam incentivadas e muitas vezes direcionadas a não entrarem por estas veredas…

Fui conhecendo aos poucos outros detalhes da cidade, Chinatown, motocicletas, o Correio, bicicletas, o rio Saigon, lambretas, a antiga sede do governo do Vietnã do Sul

, mais motocicletas. O clima de rebeldia dos anos cinqüenta estava por todo lado, parecia que o tempo havia voltado para pouco antes da guerra contra o Vietnã do Norte começar. Peguei um táxi-lambreta e fui a uma churrascaria brasileira, cujos chefs eram dois pernambucanos perdidos naquele fim de mundo. Tudo era mágico e meio etéreo em Saigon. Depois do almoço a guerra assumiu uma nova cara. Desta vez o Museu da Guerra Americana (como chamam a Guerra d o Vietnã por estes lados) foi o campo utilizado para travar esta batalha. Era mais uma exposição fotográfica do que um museu. Havia alguns aviões e tanques de guerra americanos no pátio, mas as fotos diziam, gritavam as mazelas da guerra. A dor sofrida por um povo que viveu sempre em guerra, com chineses, franceses, americanos, cambodianos e entre si mesmo parece viva e é lembrada a todo instante. Muitos daqueles que ali estavam trabalhando eram filhos da guerra. No começo, meio receosos em falar, mas aos poucos contavam como seus pais haviam perdido casas, fazendas, tudo depois da guerra. Eles não tinham nem o direito de moradia mais, pois lutavam contra o norte e contra o comunismo. Passaram cinco, sete, nove anos em campos de concentração sendo reeducados para apoiar o comunismo. Como eles apoiavam (por não ter outro jeito) o comunismo e como os pais simplesmente não podiam nem ouvir falar a palavra CONG (Comunista em vietnamita).

Embora falavam apoiar o Partido, em piadas que faziam contando como era difícil votar no vereador, pois tinham dez, vinte candidatos mas todos com a mesma plataforma política. Como era difícil escolher entre o SIM e o SIM ao comunismo. Tudo, em meio a

brincadeiras e depoimentos deixava claro que não estavam muito satisfeitos com a situação. Ainda que Saigon tenha evoluído, construído hotéis internacionais, atraindo turistas do mundo todo, eles ainda vivem em casas pequenas, onde moram os pais, os pais dos pais, os filhos, as noras, os netos, os bisnetos. Várias famílias vivendo em um só lugar.

O conceito de privacidade não existe, nem em casa, nem na rua, nem mesmo nos hotéis. Um turista francês contava que os camareiros entraram em seu quarto do hotel sem bater na porta, arrumaram o quarto, entraram e lavaram o banheiro, tudo isso enquanto ele tomava banho. Tudo isso é Saigon.

Meu último dia no Vietnã foi nos campos. Não nos campos floridos e belos, mas nos campos de arroz e de guerra.

Saímos cedo e algumas horas depois conseguimos vencer as motocicletas, bicicletas e lambretas e chegar na estrada rumo à fronteira do Laos e do Cambódia. Lá no meio dos campos onde a guerra do Vietnã e outras guerras haviam sido travadas surgia uma

nova religião: o Caodaísmo. O Caodaísmo nada mais é do que uma grande mistura de tudo quanto já passou por lá. Uma versão asiática da LBV. Claro que o budismo e o xintoísmo predominam nos ritos, nas crenças e regras, mas existem alguns elementos de outras religiões como Moisés e Cristo. Até Victor Hugo é venera do como um santo lá. O que mais me decepcionou novamente era que também lá o homem não é a medida das coisas. O homem devia se conformar com sua vida e não tentar mudá-la pois iria contra o seu destino…

Algumas horas depois passaria pelos campos de guerra. Naquele lugar estavam os túneis onde os vietnamitas se escondiam durante a guerra, onde dormiam, comiam, corriam. Eram quilômetros e quilômetros de túneis apertados com entradas minúsculas, cercado de armadilhas mortais e dolorosas. Tudo ali, muito bem conservado e mostrado com um certo orgulho. De lá, fui direto para o aeroporto, onde partiria para Bangcoc naquela mesma noite, mas as visões do sonho interrompido e da guerra sem fim não saiam de minha mente. A tática de guerrilha ali havia sido aprimorada, eles batiam, atiravam e fugiam, se escondendo. E, neste hit and hide constante venceram a guerra. Ali, naqueles campos, a princípio vinham apenas pais e mães dos rapazes que morreram, vietnamitas e americanos. O guia me contava ter perdido a conta dos litros e litros de lágrimas que havia visto sendo derramado por velhinhos americanos derramarem sob a terra onde seus filhos morreram. Ele mesmo, contava que jamais vira tristeza mais profunda do que quando uma mãe chorava a morte de um filho que morrera em condições tão desumanas. Em cada armadilha mostrada, em cada arma, túnel, tudo eram lembranças das formas como vários jovens haviam terminado uma vida de sonho. Tudo era regado com lágrimas. Um sonho que morreu junto com aqueles milhares de jovens mortos. E a lágrima e o choro pareciam formar um novo rio, talvez mais caudaloso do que o rio de sangue que havia sido derramado quatro décadas antes, um rio de dor e de amor. Um rio que nas suas corredeiras ecoava os gritos de dor e guerra que jamais vai terminar.

Beijos,

Guto/CA

Fotos:

Saigon — Hotel Majestic:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040606110421.html

Saigon–Motos:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040606110711.html

Saigon–Catedral:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040606110927.html

Saigon — Templo Budista:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040607004712.html

Saigon — Correios — Hochimin ao fundo :

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040607005227.html

Saigon — Museu da Guerra Americana:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040607005644.html

Túneis da Guerra- Entrada Secreta:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040607010322.html

Túneis da Guerra:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040607084322.html

Templo Caodaismo:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040608163150.html

Templo Caodaismo:

http://guto.castro.fotoblog.uol.com.br/photo20040608164323.html

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